OUTRO LADO: decisão da Justiça francesa atenta contra soberania do Brasil, diz Ministério das Relações Exteriores (Por Victor Lacombe e Guilherme Botacini) - foto divulgação - O Ministério das Relações Exteriores do Brasil perdeu uma ação trabalhista na França após demitir um funcionário do Consulado-Geral em Paris e vem se recusando a pagar a indenização há mais de dois anos —período no qual o valor devido chegou a cerca de € 320 mil, ou mais de R$ 2 milhões.
Agora, o ex-funcionário responsável pela ação processa o governo francês na esperança de que o país que sedia a representação diplomática brasileira arque com a dívida contraída pelo Itamaraty. A pasta, por sua vez, diz que a decisão da Justiça francesa atenta contra a soberania do Brasil.
Fachada do Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, é vista em Brasília - Roque de Sá - 15.out.20/Agência Senado
Em 2014, após descobrir que outros contratados executando as mesmas funções ganhavam € 500 a mais por mês, o brasileiro Tiago Fazito, 47, moveu uma ação na Justiça da França pedindo isonomia salarial —contratados locais de representações diplomáticas sempre são sujeitos à legislação local, inclusive trabalhista, e a lei francesa exige salários iguais para as mesmas funções.
Fazito foi contratado em dezembro de 2012 como técnico de informática, descrito no contrato como "auxiliar administrativo", com um salário de € 2.000 —na época, o salário mínimo na França era de € 9 por hora, ou € 1.300 ao mês em uma carga horária comum.
Segundo Fazito, mesmo nessa época outros funcionários do consulado já haviam movido processos contra o Itamaraty por desvio de função. Ele próprio afirma ter atuado no atendimento ao público e no trabalho com passaportes, mesmo tendo sido contratado como técnico de informática.
Por volta da época em que abriu o processo contra o Itamaraty por isonomia salarial, diz que ajudou a fundar e foi presidente de um sindicato que representava os funcionários locais das representações diplomáticas brasileiras na França —razão que motivou sua demissão, segundo contou à Folha.
"Fui despedido por questão essencialmente política, por decisão da cônsul na época [Maria Edileuza Fontenele Reis]. Me demitiram por justa causa argumentando que anexei documentos sigilosos ao processo, um absurdo", afirma, referindo-se ao contrato de trabalho e documentos rotineiros com que lidava e comprovariam o desvio de função.
Reis hoje é embaixadora do Brasil na Suécia, chefiando a representação em Estocolmo. Antes disso, foi embaixadora na Bulgária e representou o Brasil junto à Unesco, o órgão de cultura das Nações Unidas
Em resposta aos questionamentos da reportagem, o Itamaraty diz que Fazito foi demitido por "constatação objetiva de falta grave à luz do contrato que regia sua relação trabalhista com o Consulado-Geral em Paris", sem dar mais detalhes.
Entenda o casoPor que o Ministério das Relações Exteriores foi processado?O ex-funcionário Tiago Fazito entrou com uma ação na Justiça francesa por isonomia salarial e posteriormente pela reintegração, afirmando que demissão foi ilegal.
Qual foi a decisão da Justiça francesa?A Justiça determinou a reintegração de Fazito, além do pagamento de salários retroativos e multas, totalizando cerca de € 320 mil.
Por que o Itamaraty não pagou a indenização?O Itamaraty alega que a decisão judicial atenta contra a soberania brasileira e a inviolabilidade de suas representações no exterior.
O que Tiago Fazito fez após a negativa de pagamento?Ele processou o governo francês, esperando que este arque com a dívida do Itamaraty.
Quais as implicações diplomáticas do caso?O Itamaraty descarta impactos nas relações entre Brasil e França, mas mantém sua posição de não acatar a decisão judicial.
No processo, ao qual a reportagem teve acesso, a Justiça francesa descartou a argumentação de que os documentos não poderiam ser levados em conta em razão de sua natureza supostamente sigilosa, afirmando que o ex-funcionário não utilizou os papéis com outro motivo além do de provar os fatos do caso.
Logo após ser mandado embora, Fazito moveu outro processo contra o Itamaraty, afirmando que a demissão foi ilegal e pedindo sua reintegração.
A Justiça francesa ordenou que o consulado reintegrasse Fazito ao corpo de funcionários e rejeitou pleito brasileiro de que a representação em Paris teria imunidade com relação à execução de decisões judiciais, com base na Convenção de Viena de 1961.
Para os magistrados da corte de apelações de Paris, da segunda instância, o caso é uma questão trabalhista natural do direito privado, e portanto o princípio da imunidade diplomática não se aplicaria ao processo.
Além de reintegrar o funcionário, o consulado foi condenado a indenizá-lo com o total dos salários que ficou sem receber entre a demissão e eventual reintegração somado a multas que ultrapassam € 16 mil.
Segundo Fazito, o prazo para que o Brasil apelasse da decisão terminou em setembro de 2024 sem que o Itamaraty apresentasse recurso. Isso porque, segundo a legislação francesa, o empregador que deseja apelar de decisão de segunda instância precisa primeiro realizar o pagamento da indenização devida, o que não ocorreu. Caso ganhe a ação posteriormente, será reembolsado.
O ex-funcionário entrou, então, com pedido para que a decisão transitasse em julgado —ou seja, que o caso seja oficialmente encerrado, sem possibilidade de recurso. A Justiça francesa ainda não decidiu sobre o pedido.
Questionado pela Folha, o Itamaraty descreveu a ordem de reintegração de Fazito como um atentado à soberania do Brasil e afirmou que não acatará a decisão por se tratar de uma ordem de recontratação de funcionário demitido.
"Decisões dessa natureza vão além da esfera estritamente trabalhista e atentam contra a soberania e a inviolabilidade das representações brasileiras no exterior, princípios sobre os quais não há hipótese de relativização", escreveu a pasta.
"O Estado brasileiro determina o pagamento de decisões desfavoráveis sempre que esgotados os recursos a serem interpostos no Judiciário local. Entretanto, não pode acatar decisões judiciais que atentem contra as inviolabilidades de seus postos no exterior", conclui, descartando a hipótese de que o caso poderia afetar as relações diplomáticas entre o Brasil e a França. (Fonte: Folha de SP)
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